É preciso pôr o pé no freio
Por Fabiane Stefano
EXAME A professora Paola dos Reis aproveitou a tarde do sábado, 21 de junho, para realizar um antigo sonho. Depois de duas horas de angústia e muita conversa com o namorado ao telefone, ela decidiu comprar seu primeiro automóvel zero-quilômetro, um Celta 1.0 com poucos acessórios, numa feira de venda de carros em São Caetano do Sul, no ABC paulista. A decisão implicará uma dura rotina financeira nos próximos anos — se tudo correr bem, em junho de 2010 ela pagará a última das 24 parcelas do financiamento. Até lá, quase metade do salário que recebe de uma escola particular de São Caetano do Sul estará comprometida. É, de longe, a maior dívida de sua vida, mas ela já planeja a próxima. “Ainda quero comprar meu apartamento, mas terá de ficar para depois”, diz Paola. “Sei que vou ficar pagando prestações por muito tempo, mas só assim dá para melhorar de vida.”
Decisões como a de Paola — e de milhões de pessoas que, como ela, estão aproveitando o bom momento econômico do país para experimentar as delícias do consumo — estão por trás dos sucessivos recordes de produção e vendas da indústria brasileira. A queda dos juros e o alongamento dos financiamentos dos últimos anos colocaram no mercado uma massa nova de consumidores, estimada em 24 milhões de pessoas, que estão fazendo a festa de montadoras, construtoras e fabricantes de eletroeletrônicos, entre outros. “O mercado está extremamente receptivo”, diz Wagner Rezende, sócio da Incons, construtora e incorporadora paulista voltada para o público de classe média e baixa. “As pessoas estão confiantes que vão manter os empregos, e isso é vital num mercado de financiamento de longo prazo.” No setor de roupas, os varejistas contabilizaram vendas 12% maiores no Dia das Mães deste ano em comparação com o anterior. “Foi um resultado excelente”, diz Sylvio Mandel, presidente de uma associação que reúne grandes redes de lojas.
Tamanho frenesi virou o principal objeto de apreensão de economistas e das autoridades de Brasília. Segundo o Banco Central, o número de pessoas com dívidas superiores a 5 000 reais aumentou quase 50% em apenas dois anos. Começa a se generalizar a percepção de que o consumo está andando bem à frente da produção, e que esse desequilíbrio inevitavelmente vai agregar mais pontos aos índices de inflação. Pela primeira vez no ano, o levantamento feito pelo BC com analistas de bancos, corretoras e consultorias mostrou uma expectativa de inflação superior a 6%. Já há quem trabalhe com um número próximo de 7%, acima, portanto, do que o governo julga “aceitável” — a meta oficial é 4,5%, com dois pontos de tolerância. Não é um cenário de crise — longe disso. Antes do Real, instituído há apenas 14 anos, muitos economistas viam como razoável a convivência com uma taxa de inflação de 25%. Estavam evidentemente errados, como demonstra a saudável preocupação com uma taxa anual que nem sequer se aproxima dos dois dígitos. Mesmo infinitamente longe da loucura inflacionária do passado — e mesmo considerando-se que parte do aumento dos preços segue uma lógica internacional —, o cenário merece cuidado pelo fôlego que a inflação vem demonstrando. “Não há mágica na economia: se todos querem consumir além do que produzimos, ou importamos mais ou teremos inflação”, diz o economista Sergio Valle, da consultoria MB Associados. “O que estamos vendo hoje é uma combinação preocupante das duas coisas.”
Essa noção foi reforçada com a divulgação de uma série de estatísticas novas, que acenderam a luz amarela quanto ao cenário para a economia nos próximos meses. Por um lado, ficou claro que o ritmo econômico está forte. O PIB no primeiro trimestre do ano avançou 5,8%. Com isso, as previsões para o crescimento em 2008 subiram um pouco e apontam para uma taxa de expansão de 5%. Em tempos normais, seria uma ótima notícia. Na conjuntura atual, o dado confirmou a impressão de que uma freada de arrumação terá necessariamente de vir pela frente. O consumo das famílias cresceu 6,5% — e o Ipea, órgão de pesquisa do governo, estima que essa taxa será mantida até dezembro. O investimento das empresas aumentou 14% — um dado certamente positivo, mas que agrega mais força à demanda doméstica. E os gastos do governo cresceram 4%, abaixo do ritmo de anos anteriores, mas ainda capaz de pressionar os preços.
O próprio governo já vem trabalhando com a hipótese de refrear os ânimos. “Estamos perseguindo um crescimento mais equilibrado para que possamos sustentá-lo por bastante tempo”, diz o ministro da Fazenda, Guido Mantega. O governo anunciou recentemente a elevação do aperto fiscal, uma forma de conter a demanda pública. O superávit primário, originalmente previsto em 3,8% do PIB, subiu para 4,3% — e, informalmente, membros da equipe econômica já admitem que perseguirão um número próximo de 4,5%. O BC, por sua vez, iniciou uma seqüência da alta dos juros sem data para terminar. As previsões do mercado são que o patamar atual dos juros, de 12,25%, seja alçado para 14,25% até dezembro — cenário que era tido como improvável há poucas semanas. Subir juros não é algo indolor, mas é um ajuste necessário num momento em que o setor público ainda gasta demais. Nesse sentido, quanto maior o superávit primário, menor a necessidade de subir os juros.
O quadro é agravado pela conjuntura internacional, que continua em deterioração. Também lá fora há mais consumo que produção, o que tem feito os preços dispararem em todo o mundo. Um estudo recente do banco americano JPMorgan analisou o comportamento da utilização da capacidade produtiva mundial e comparou-a à taxa de juro vigente nas principais economias. A conclusão é que o mundo se encontra num momento extremamente “apertado” em termos de capacidade produtiva — ou seja, há pouco espaço para aumentos rápidos de oferta. Isso é resultado de uma seqüência de anos positivos — o mundo viveu nesta década a fase mais próspera desde os anos 60, com crescimento médio de 5% entre 2003 e 2007. É natural, portanto, que haja pouca capacidade de produção a ser aproveitada. Por outro lado, a taxa real de juro ainda se encontra baixa. Lentamente, a maioria dos bancos centrais está apertando a política monetária como forma de tentar impedir que a inflação dispare. “Não há nada de errado com o que estamos vivendo”, diz Fabio Akira, economista-chefe do JPMorgan no Brasil. “Depois de anos de crescimento forte, agora vemos o outro lado da moeda, uma fase de correção.”
EXAME A professora Paola dos Reis aproveitou a tarde do sábado, 21 de junho, para realizar um antigo sonho. Depois de duas horas de angústia e muita conversa com o namorado ao telefone, ela decidiu comprar seu primeiro automóvel zero-quilômetro, um Celta 1.0 com poucos acessórios, numa feira de venda de carros em São Caetano do Sul, no ABC paulista. A decisão implicará uma dura rotina financeira nos próximos anos — se tudo correr bem, em junho de 2010 ela pagará a última das 24 parcelas do financiamento. Até lá, quase metade do salário que recebe de uma escola particular de São Caetano do Sul estará comprometida. É, de longe, a maior dívida de sua vida, mas ela já planeja a próxima. “Ainda quero comprar meu apartamento, mas terá de ficar para depois”, diz Paola. “Sei que vou ficar pagando prestações por muito tempo, mas só assim dá para melhorar de vida.”
Decisões como a de Paola — e de milhões de pessoas que, como ela, estão aproveitando o bom momento econômico do país para experimentar as delícias do consumo — estão por trás dos sucessivos recordes de produção e vendas da indústria brasileira. A queda dos juros e o alongamento dos financiamentos dos últimos anos colocaram no mercado uma massa nova de consumidores, estimada em 24 milhões de pessoas, que estão fazendo a festa de montadoras, construtoras e fabricantes de eletroeletrônicos, entre outros. “O mercado está extremamente receptivo”, diz Wagner Rezende, sócio da Incons, construtora e incorporadora paulista voltada para o público de classe média e baixa. “As pessoas estão confiantes que vão manter os empregos, e isso é vital num mercado de financiamento de longo prazo.” No setor de roupas, os varejistas contabilizaram vendas 12% maiores no Dia das Mães deste ano em comparação com o anterior. “Foi um resultado excelente”, diz Sylvio Mandel, presidente de uma associação que reúne grandes redes de lojas.
Tamanho frenesi virou o principal objeto de apreensão de economistas e das autoridades de Brasília. Segundo o Banco Central, o número de pessoas com dívidas superiores a 5 000 reais aumentou quase 50% em apenas dois anos. Começa a se generalizar a percepção de que o consumo está andando bem à frente da produção, e que esse desequilíbrio inevitavelmente vai agregar mais pontos aos índices de inflação. Pela primeira vez no ano, o levantamento feito pelo BC com analistas de bancos, corretoras e consultorias mostrou uma expectativa de inflação superior a 6%. Já há quem trabalhe com um número próximo de 7%, acima, portanto, do que o governo julga “aceitável” — a meta oficial é 4,5%, com dois pontos de tolerância. Não é um cenário de crise — longe disso. Antes do Real, instituído há apenas 14 anos, muitos economistas viam como razoável a convivência com uma taxa de inflação de 25%. Estavam evidentemente errados, como demonstra a saudável preocupação com uma taxa anual que nem sequer se aproxima dos dois dígitos. Mesmo infinitamente longe da loucura inflacionária do passado — e mesmo considerando-se que parte do aumento dos preços segue uma lógica internacional —, o cenário merece cuidado pelo fôlego que a inflação vem demonstrando. “Não há mágica na economia: se todos querem consumir além do que produzimos, ou importamos mais ou teremos inflação”, diz o economista Sergio Valle, da consultoria MB Associados. “O que estamos vendo hoje é uma combinação preocupante das duas coisas.”
Essa noção foi reforçada com a divulgação de uma série de estatísticas novas, que acenderam a luz amarela quanto ao cenário para a economia nos próximos meses. Por um lado, ficou claro que o ritmo econômico está forte. O PIB no primeiro trimestre do ano avançou 5,8%. Com isso, as previsões para o crescimento em 2008 subiram um pouco e apontam para uma taxa de expansão de 5%. Em tempos normais, seria uma ótima notícia. Na conjuntura atual, o dado confirmou a impressão de que uma freada de arrumação terá necessariamente de vir pela frente. O consumo das famílias cresceu 6,5% — e o Ipea, órgão de pesquisa do governo, estima que essa taxa será mantida até dezembro. O investimento das empresas aumentou 14% — um dado certamente positivo, mas que agrega mais força à demanda doméstica. E os gastos do governo cresceram 4%, abaixo do ritmo de anos anteriores, mas ainda capaz de pressionar os preços.
O próprio governo já vem trabalhando com a hipótese de refrear os ânimos. “Estamos perseguindo um crescimento mais equilibrado para que possamos sustentá-lo por bastante tempo”, diz o ministro da Fazenda, Guido Mantega. O governo anunciou recentemente a elevação do aperto fiscal, uma forma de conter a demanda pública. O superávit primário, originalmente previsto em 3,8% do PIB, subiu para 4,3% — e, informalmente, membros da equipe econômica já admitem que perseguirão um número próximo de 4,5%. O BC, por sua vez, iniciou uma seqüência da alta dos juros sem data para terminar. As previsões do mercado são que o patamar atual dos juros, de 12,25%, seja alçado para 14,25% até dezembro — cenário que era tido como improvável há poucas semanas. Subir juros não é algo indolor, mas é um ajuste necessário num momento em que o setor público ainda gasta demais. Nesse sentido, quanto maior o superávit primário, menor a necessidade de subir os juros.
O quadro é agravado pela conjuntura internacional, que continua em deterioração. Também lá fora há mais consumo que produção, o que tem feito os preços dispararem em todo o mundo. Um estudo recente do banco americano JPMorgan analisou o comportamento da utilização da capacidade produtiva mundial e comparou-a à taxa de juro vigente nas principais economias. A conclusão é que o mundo se encontra num momento extremamente “apertado” em termos de capacidade produtiva — ou seja, há pouco espaço para aumentos rápidos de oferta. Isso é resultado de uma seqüência de anos positivos — o mundo viveu nesta década a fase mais próspera desde os anos 60, com crescimento médio de 5% entre 2003 e 2007. É natural, portanto, que haja pouca capacidade de produção a ser aproveitada. Por outro lado, a taxa real de juro ainda se encontra baixa. Lentamente, a maioria dos bancos centrais está apertando a política monetária como forma de tentar impedir que a inflação dispare. “Não há nada de errado com o que estamos vivendo”, diz Fabio Akira, economista-chefe do JPMorgan no Brasil. “Depois de anos de crescimento forte, agora vemos o outro lado da moeda, uma fase de correção.”
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